Crítica #04: O homem que confundiu sua mulher com um chapéu, de Oliver Sacks

E como conhecemos menos sobre nós do que sobre o mundo afora.

Oliveira Cony
8 min readDec 13, 2020

Oliver Wolf Sacks foi provavelmente o neurologista mais famoso na literatura médica. Nasceu em Londres, em 1933, mas fez boa parte de sua carreira nos Estados Unidos, onde viveu até seu últimos dias. Morreu em Agosto de 2015, com 82 anos. Sacks ficou famoso no meio acadêmico (e fora dele) por suas pesquisas sobre Enxaqueca (o que inclusive originou seu primeiro livro, Enxaqueca, que falarei futuramente), e logo sua paixão por reportar seus casos, sua vida médica e sua pesquisa afloraram, tornando-se um fantástico escritor. A maior de suas habilidades é a de passar para um público leigo as maravilhas da mente (e seus medos), como um professor que também é um amigo, ele nos conduz por uma jornada por conhecimentos que a maior parte de nós jamais pensou antes em perscrutar. E é sobre isso que fala “O homem que confundiu sua mulher com um chapéu”. Provavelmente a obra mais famosa do autor (e uma das primeiras de sua carreira), e um ótimo exemplo de sua literatura. Como sempre, começarei conversando sobre a edição e depois dividirei a crítica em 2 partes: “Visões de um Neurologista” e “Perdas, excessos, e o nunca normal.”

Na verdade, por se tratar do livro mais episódico de Sacks (e ser o mais famoso), lidarei boa parte dessa crítica mais como uma visão geral sobre o autor e sobre a forma do neurologista. Além disso, fora Enxaqueca, os livros de Oliver tendem a ser curtos e concisos, de forma que suas críticas claramente seguirão um padrão mais resumido.

A Edição Brasileira:

Até onde sei, todos os livros de Sacks foram distribuídos no Brasil pela Companhia das Letras, a partir da década de 90. A tradução é por Laura Teixeira Motta que, graças a Deus, também é a tradutora de todos os outros livros de Sacks pela editora, o que torna a linguagem coerente. É muito satisfatório ter um linguagem concisa e “no mesmo estilo” em todos os livros do mesmo autor. Conheceremos Sacks pelas palavras de Laura, e ela é ótima com palavras.

Em média, sou fã da Companhia das Letras, as edições são sempre bonitas, organizadas e de boa qualidade, e isso não é diferente aqui. A gramatura do papel é boa, páginas não muito claras, e uma impressão de ótima qualidade. A capa é um dos pontos que mais amo nessas edições. Sobre ilustrações de Zaven Paré. Simples, belas, e que combinam sempre com os títulos, e os títulos de Sacks são provavelmente os melhores que eu já vi na literatura médica (e, possivelmente, na literatura geral). Uma pequena raiva que tenho é de uma capa plástica que vem junto ao livro (ela protege contra sujeira, é um hábito bem comum). O problema não é isso, é que o título fica impresso nessa capa plástica, o que atinge meu TOC. Fora isso, a edição é excelente.

Obs.: Descobri posteriormente que a própria Companhia das Letras têm outra verão dos livros de Sacks, de bolso, sem a capa de plástico.

Visões de um Neurologista:

Sacks é um Neurologista e Psiquiatra, isso significa que ele estuda o cérebro, sua formação, seus eventuais defeitos, sua constituição e maleabilidade. Além da mente, sua forma, eventuais problemas, transtornos, e etc. Ele ainda fala muito de como as duas coisas se misturam, e como a parte física de nosso corpo afeta a mental, e a mental afeta a física. Um AVC pode causar danos na forma como vemos o mundo, enquanto uma experiência muito difícil de se ver fisicamente (como casos leves de autismo) podem ser claramente observados no comportamento. Mais do que tudo, Sacks é um médico e um cientista, e essas duas visões são como um yin-yang, não necessariamente opostos, mas complementares.

Quando médico, Sacks vive com os pacientes, visita, conversa, é um amigo no meio dos hospitais psiquiátricos (como no Beth Abraham, onde passou boa parte de sua carreira), mas como cientista sua visão é extremamente profissional e observadora, e por seus olhos o livro nos mostra como é o acompanhamento de pacientes em estados extremos. Boa parte da leitura se passa nos pensamentos e questionamentos do autor, e por isso imagino ser uma leitura indispensável para qualquer cientista (se não este livro, outro do autor que aborde de forma parecida, como Um Antropólogo em Marte).

Oliver em frente ao Abraham Beth, hospital em que ocorreram boa parte dos casos retratados no livro.

De forma genérica, podemos dizer que o maior mérito desse livro está em apresentar para um público leigo como é o trabalho de um Neurologista. Sua rotina, a forma de se tratar os pacientes, que tipos de condições existem e, ao menos para mim, explodir a cabeça com a complexidade de coisas que podem não sair como o esperado dentro de nossa mente e cérebro. Em uma segunda camada, para médicos ou entusiastas, a leitura proporciona minuciosos estudos de casos impressionantes, nos revelando a pluralidade da beleza da mente humana.

Acho que não foi intensão de Sacks deixar o leitor com “pena” dos pacientes, mas isso inegavelmente acontece durante a leitura. Apesar de uma visão mais fria ser necessária quando se estuda a mente, é impossível não se apegar aos casos e se imaginar na posição dos pacientes. Quase sempre se trata de um caso quase Lovecraftiano, em que é literalmente impossível compreender o que se passa na mente dos pacientes, sobretudo os pós-encefalíticos. A leitura de qualquer livro de casos, portanto, deve ser feita com algum estômago, porquê por mais que exista humor, curiosidade e admiração, é comum nos perdemos nos pensamentos mais profundos sobre fragilidade, perda, tristeza e sentimentos de solidão a angústia.

Perdas, excessos, e o nunca normal:

Graças ao Coronavírus, falamos muito do “Novo Normal”, como as pessoas vão se comportar, como a sociedade se formatará a uma nova realidade. A mais pura verdade, de fato, é que normal é um termo relativo (a menos que você seja Físico ou matemático, então “Normal” quer dizer perpendicular). Com “normal” queremos dizer tradicional, ou, no melhor dos casos, o que é verdade para a maioria das pessoas. Em “O homem que confundiu sua mulher com um chapéu”, Sacks discorre sobre esse tema, apresentando uma série de casos notáveis de seus pacientes.

A maior parte dessas histórias não são relacionadas diretamente, e nem necessariamente estão em ordem cronológica, mas estão dividas em 4 partes: Perdas, Excessos, Transportes e O mundo dos simples. Não é necessário, porém, ler na ordem. Os contos são casos que ocorreram durante a vida de Sacks, e todos são acompanhados de pensamentos (e devaneios) do autor sobre uma série de outros temas. Em muitos casos, como Nostalgia Incontinente (parte 3), o caso em si é mais um plano de fundo para os pensamentos sobre a mente de Sacks. O que sentimos é o que é real? As pessoas não neurotípicas são iguais a nós? Porquê sentimos o que sentimos? Os erros em nosso sistema mental são resolvíveis e, se são, devemos consertá-los? Seriam erros mesmo?

O leitor de primeira viagem pode se assustar com os termos e os pensamentos desse livro. Não é comum pensar que algumas pessoas podem sentir odores que você não sente (O cão sob a pele, parte 3), pode não reconhecer parte do próprio corpo (O homem que caía da cama, parte 1) ou, no caso que dá nome ao livro, literalmente confundir sua mulher com um chapéu. O conto específico, o primeiro do livro, é um aviso do que está por vir. Nele, o “dr. P” (por motivos claros, raramente Sacks dá qualquer informação sobre os pacientes), perde completamente a correlação entre objetos, nomes, funções e formas. A ponto de confundir sua mulher, literalmente, com um chapéu, pois por mais que fisicamente suas retinas estivessem mandando os sinais corretos de visualização para seu cérebro, a interpretação das imagens com os significados foi completamente perdida. Se imaginarmos a memória como um grande arquivo, onde cada gaveta possui a imagem de um objeto, seu nome e seu significado, o arquivo do dr. P estava completamente bagunçado, de forma que para ele era inclusive completamente inconcebível seu estado mental.

No fim de cada conto, Sacks costuma divagar um pouco sobre o assunto em questão, e sempre exaspera o quão incrível pode ser a variedade humana. O homem que confundiu sua mulher com um chapéu são quatro livros em um, e cada um deles na verdade são diversos livros em um também. O mais importante de se ter em mente durante a leitura é que os casos são reais, abrir a mente para a percepção de que nossa concepção de realidade pode não ser a mesma de nossos pais, amigos, amores e desconhecidos. É a melhor introdução para alguém no mundo Sackiano, ainda mais quem nunca teve contato com a neurociência e ainda é cego em relação à pluralidade de formas como nossa mente pode atuar.

Literalmente atuar. Como demonstrado por Sacks em praticamente todos os casos, somos protagonistas de uma história nossa, e não simples espectadores, e é impossível conceber o universo como outra mente o faz. Se, para você, é comum decorar mais de 2.000 óperas, como Martin de O dicionário de música ambulante (parte 4), é inconcebível não ver a música desse jeito (muitas vezes, como o caso dos sinestetas descritos em Alucinações Musicais, livro que ainda falarei aqui, literalmente ver música).

Conclusão:

Para o entusiasta, apesar de ser um pouco desafiadora em alguns momentos, a leitura desse livro é um marco. Sacks te conduz por uma selva desconhecida que é a nossa mente. Mostrando extremos e casos surpreendentes, ele nos mostra que conhecemos menos sobre nós do que pensamos. Dos livros do autor, este é um dos mais simples, bem escrito e “episódico”, ou seja, não é uma história contínua, e nem gira todo entorno do mesmo tema. Apesar de usar termos técnicos, a leitura é de fácil acesso, e com certeza é um ponto de partida ótimo para o tema.

Prós e Contras:

Eu sou contra dar notas, então como uma parte de rápida análise para quem tem preguiça, sempre irei fazer uma lista de prós e contras ao final de cada crítica, justamente com os pontos que mais gostei e que menos gostei em cada obra (5 no máximo).

Prós:

  • A leitura é prazerosa e os temas discorrem amigavelmente, Sacks tem efetivamente o dom da escrita.
  • Cada caso do livro é diferente e único, e temos sempre a sensação de que estamos prestes a presenciar um novo mundo. Essa sensação é extremamente prazerosa.
  • Os questionamentos ficam em nossa cabeça muito depois do livro acabar, e a visão de mundo sobre pessoas neurotípicas e neuroatípicas muda drasticamente para quem não tem experiência no assunto.
  • O autor se mostra bem coeso nos pensamentos e sempre deixa claro seu pensamento em cada caso que apresenta, se portando como um narrador, mas também como um amigo em cada conto.

Contras:

  • Para o entusiasta ou pessoa que nada entende do assunto, Sacks às vezes exagera nos termos médicos sem explicação do que significam.
  • Alguns “acabam” cedo demais, parecendo que está faltando algo. É compreensível sabendo que são casos reais, mas do ponto de vida de “storytelling” é um pouco broxante.

Outras críticas de livros do mesmo autor:

Crítica #03: O Rio da Consciência

Crítica #08: Um Antropólogo em Marte

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Oliveira Cony

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